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Crônica: Sobre relógios e formigas, por Daniela Delias

Vivia no mundo da lua. Era mesmo avoada, aquela menininha. Bastava um pingo de chuva na vidraça, o vaivém das formigas carregando suas folhinhas, e pronto: lá estava ela perdida em seus pensamentos. Era pequena e prestava atenção nas coisas pequenas: a ponta da sapatilha da bailarina, os pés do avô acompanhando o ritmo da música, o tique-taque do relógio anunciando que o tempo jamais pararia. Das imagens, inventava histórias. Nas histórias, reinventava as palavras e os jeitos de dizer, como quem escreve poesia.


Donald Winnicott, um sensível psicanalista inglês, disse, certa vez, que é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança desfruta sua plena liberdade de criação. É através da atividade lúdica que os pequenos representam a realidade, internalizando-a e atribuindo a ela novos sentidos, de acordo com suas necessidades. Nesse processo de apreensão e “invenção” da realidade, a linguagem, particularmente a linguagem poética, funciona como um mediador da interação da criança com o meio em que vive. Um mediador que, diga-se de passagem, está presente desde cedo em nossas vidas, se pensarmos nas canções de ninar e nas cantigas de roda, por exemplo. Tais canções parecem conter elementos mágicos, tamanho o encanto da criança frente à rima e ao ritmo, mesmo quando ainda não possui plena compreensão da sua mensagem.


Pais e cuidadores muitas vezes se perguntam o que é preciso fazer para manter aceso este encanto natural da criança pela linguagem poética ou para que tome gosto pela literatura, de uma maneira geral. É inegável a importância do estímulo externo, seja na forma de projetos educativos que têm como objetivo aproximar a criança da poesia, incentivando-a a ler e escrever, seja pelo convívio em um ambiente no qual a leitura e a escrita fazem parte do cotidiano dos adultos. Mas eu diria, retomando a ideia da importância do brincar no processo criativo, que escrever significa, em primeiro lugar, brincar com as palavras, e brincar só é possível quando há espaço para isso, dentro e fora de nós. Quando esse espaço existe, mundos e experiências tornam-se possíveis de serem imaginados e, quem sabe, descritos no papel.


Para finalizar, deixo aqui um pequeno poema daquela menininha, aquela que se perdia em pensamentos olhando a ponta da sapatilha da bailarina. O tique-taque do relógio não parou e ela entendeu que, por isso, o avô não poderia acompanhar para sempre o ritmo da música com seus pés. Mas ela ainda observa o vaivém das formigas, os pinguinhos de chuva na vidraça e, sempre que possível, fala para outras crianças e seus cuidadores adultos sobre o tempo em que era só uma menininha e fazia poesia: “Faz de conta que a gente / esqueceu de crescer / fadas, espadas, mares à vista / olhos de nunca amanhecer...”


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